terça-feira, 4 de dezembro de 2012

UM ENCONTRO MARCANTE

22 anos. Roma. eu timida. eu desconfiada. eu que não acredito muito em mim. eu que não gosto muito de mim. eu que tenho dois celulares porque a minha mae me regalou aquilo que faz as video-chamadas.  eu que estudo roteiro. eu que acho essa minha universidade um lugar tão frio. eu que vou quase todos os dias na academia. eu que por acaso conheço a Françoise, 74 anos.

Françoise é a mulher viuva de um roteirista que trabalhou com Fellini e com Dario Argento. Ela também atuou em filmes, tempo atrás, e conheceu o mundo todo do cinema italiano. Ela viveu uma vida cheia de poesia, de contos, de ótimo vinho e spaghetti à langosta, de filhos e de paixão. Paixão pelo marido dela.
As lembranças dessa vida estão diseminadas pela sua casa toda, e são as únicas coisas que ela tem; ninguém mais vai visita-la. O marido e uma filha faleceram, e os outros filhos e os netos talvez não a consideram mais alguém de muita importância.
Françoise é sozinha e nostalgica, e pode passar desde a risada ao choro em dois segundos, varias vezes no tempo de dois minutos. Tem uma sombra de instabilidade no jeito dela, mas talvez, como poderia não ser, numa solidão tão grande, depois de tanta vida?
Françoise é alegre e safada, inteligente e aculturada. E sozinha.
E por alguma estranha razão, ela gosta de mim. Me oferece a sua ajuda, a sua companhia, me mostra fotos, cartas, me empresta um livro escrito pelo marido, me faz convites importantes.
E eu.
eu timida. eu desconfiada. eu que não acredito muito em mim. eu que não gosto muito de mim. eu que tenho dois celulares porque a minha mae me regalou aquilo que faz as video-chamadas. eu que estudo roteiro. eu que não entendo porque ela goste de mim. eu que não quero me aproveitar dela e parecer que estou saltando etapas porque conheci a pessoa certa. eu que tenho um pouco de medo dela, porque ela me parece invasiva, alguém que faz muito ruído quando passa na sua vida, um pouco demais.
eu que por isso, não consigo ter a naturalidade de pegar o telefone e chama-la. eu que demoro em ligar de volta. eu que não sei como me relacionar. eu que não tenho experiencia. eu que não tenho a coragem de mostrar para ela as coisas que escrevo. eu que não sei subir nesse trem.

E pouco tempo, muito pouco tempo que de fato nós nos conhecimos.

Um dia como os outros ela me liga para me fazer uma proposta muito interessante, e eu estou no barco que de Cagliari me leva para Civitavecchia. A ligação cai e o sinal só volta no dia depois. Mas eu demoro mais um dia para ligar de volta para ela. Por todas as razões que me caraterizam e por causa de como eu filtro as poucas informações que tenho sobre ela.

E ela não gosta da minha demora. Me fala que ela errou de consideração sobre mim, que eu só sou uma    menina pendurada e apegada demais à família que só sabe viver com o dinheiro dela e com dois celulares. Que provavelmente não tenho muita cultura. Que com certeza tenho uma opinião errada sobre ela. Que posso esquecer a proposta que ela me fez e esquecer dela. Me fala muitas outras coisas obscuras que eu apaguei. Me fala a coisa que mais doeu e que nunca vou esquecer, me fala que como escritora, eu não vou conseguir. Que eu nunca vou conseguir ser uma escritora de verdade, porque eu não tenho caracter. Fala isso com uma voz velata, como fosse uma profezia, um oracolo. Fala isso com muita calma e lucidez.

E trapassa o meu coração.

Fala com satisfação essas palavras cor batom vermelho aceso.
E ainda hoje, todas as vezes que eu tenho vontade de escrever um conto, as suas palavras voltam a arranhar. E antes de começar a escrever, eu tenho que atravessa-las como se atravessa uma estrada sem semáforo, cheia de carros vindo em alta velocidade.

Ela corta a ligação antes do que eu fale qualquer coisa.
Não falei com ela nunca mais.
Françoise.
E eu.
Eu que não tenho caracter.




Nenhum comentário:

Postar um comentário